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Por Gerd Bornheim

 

Tempo e espaço são noções que se movem no curso da dramaturgia beckettiana de modo especialmente incisivo. Em Esperando Godot, a peça inaugural, há um momento em tudo privilegiado em que se vêem os dois palhaços-mendigos instalados em um meio-fio qualquer. Um deles tira o velho e esburacado sapato e põe-se a sacudi-lo, como se nele houvesse algo a impedir, quiçá, futuras caminhadas. Seu parceiro observa essa estranha azáfama e pergunta, intrigado: “Você acha que nós temos um sentido?” O “sapatólogo” pára, responde ao olhar, faz uma pequena pausa e dá uma estrondosa gargalhada. Nem deixa de ser curioso que a mesma pergunta apareça ainda em outra peça do autor. E a situação, note-se, tem tudo a ver com aquelas noções de tempo e espaço.

Bem pensadas as coisas, a cena descrita liga-se aos próprios inícios do mundo ocidental. De onde nasce o tempo e qual o sentido do espaço? É interessante lembrar que, já em Homero, o tempo costuma ligar-se à experiência de certa duração, toda tendida para o futuro. É o tempo, por exemplo, de Penélope, sempre na espera, a tecer o seu tapete. E é o tempo também do olhar saudoso de Ulisses e de seu desejo de reencontro. Ou seja, o tempo como que brota do vazio da espera, o nada inventa a própria substância do tempo. Desde então, as coisas se complicam, mas é só na Oréstia de Ésquilo que surge o tempo passado. A partir dessas vivências todas, sabe-se da história: das passagens do plano mítico para o racional, dos privilégios teologais do instante para a “matematização” do ponto e da soberania de uma realidade mensurável.

O extraordinário da velha experiência está justamente em um ponto singular e único da antiga mitologia grega: e é que, na origem, o que havia era o caos, aquele sem-sentido que impunha ao homem, ainda que travestido em deus, a construção do sentido; pois está na construção do tempo e do espaço o núcleo em que se concentra, por assim dizer, a própria invenção do sentido. E não é que, milênios mais tarde, nosso cansado e frenético mundo atual volta a namorar esses velhos problemas? Virou até moda hoje falar em caos no âmbito das ciências. Tudo se passa como se, em nossos dias, se buscasse a recriação do espaço e do tempo.

Beckett, no ocaso desse percurso todo, representa como que a finalização do ponto zero. Mais matemática nem pode existir: com Beckett, o tempo é esse instante plenamente calculado, medido em suas minudências mais extremas – espécie de longo monólogo exacerbado. O passado perdeu-se, e perdeu-se no sem-sentido; o futuro fica por conta do sapato esburacado do palhaço a devolver o todo a uma perplexidade radical: afinal, temos um sentido? Mas não se trata aqui de um simples esvaziamento ou da falta de perspectivas. Esses modos de falar não passam de um engodo deplorável, mesmo porque tudo é vazio e os horizontes se desfazem. O instante de hoje é resumo de todo um  passado a confundir-se com a inteireza daquilo que o mundo ocidental soube construir. Mas há de ser também a sobrevivência mínima a veicular uma nova promessa. O problema agora é: como superar o velho, sujo e esburacado sapato? Como ir além do sapato dos espaços fechados e do tempo repetitivo, e que faz do instante a hemorragia pervagada em seus próprios descaminhos? Mas, afinal, o Ocidente sempre soube fazer do nada o princípio de uma catarse, mesmo porque hoje chegou a reconhecer que o niilismo habita a sua própria essência. E então, e já que as especulações em torno da figura de Godot se fizeram descabidas, qual o sentido da insistência no emprego do gerúndio?

 

Texto publicado no catálogo: GUIMARÃES, Adriano; GUIMARÃES, Fernando (org.). Felizes Para Sempre. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil, 2001. 

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